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Da política e das historicidades, entre novos problemas e antigas soluções da política nacional

  • Foto do escritor: Grupo Editorial
    Grupo Editorial
  • 9 de jun. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 11 de jun. de 2020

Daniel Machado Bruno



Poliarquia - Revista de Política & Cultura

ISSN 2675-3529 - Volume 1 - ed006 - 2020

Recebido: 08.06.2020

Aceito: 09.06.2020

Publicado: 09.06.2020



Na última década, o debate sobre a política brasileira tem apontado o afastamento progressivo entre o sistema político e amplos setores da sociedade civil, que reclamam a falta de representatividade na arena institucional da nação. As interpretações mais recentes dos analistas políticos destacam alguns fatos que ilustram esse afastamento, tais como as manifestações de Junho de 2013 e o choque com que foram recebidas tanto pelo governo quanto pela classe política em geral à época, a ruptura institucional de 2016 e, talvez como maior emblema, as últimas eleições do país, com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018. Este último acontecimento em especial, por deslocar duas tendências materializadas no campo político nacional desde, pelo menos, 1994: por um lado, o arranjo de governabilidade entre os poderes Executivo e Legislativo que os analistas têm se dividido em designar pelo conceito de “presidencialismo de coalizão” (ABRANCHES, 1988, 2018) ou “pemedebismo” (NOBRE, 2013); e, por outro, a condensação do sistema político em um arranjo triádico partidário que opunha frontalmente Partido dos Trabalhadores (PT, pelo eixo da centro-esquerda) ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB, pelo eixo da centro-direita). Nessa configuração, o centro da balança era até então ocupado pelo partido do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), (oni)presente na situação e oposição a um só tempo. Tais acontecimentos em foco, se os pensarmos no sentido emprestado pelo filósofo Jacques Derrida à noção em termos de imprevisibilidade, singularidade e indeterminação, abalaram a ordem da temporalidade em curso, promovendo uma espécie de desconstrução dos arranjos estáveis que governavam a política nacional. Vivencia-se, sob esse contexto desde então, um estado análogo ao descrito pela máxima gramsciana transicional de que o “velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer”. Desse modo, a conjuntura atual coloca em xeque as interpretações até então consagradas sobre o sistema político (AVELAR, 2018) e desafia o período transicional a propor novas saídas. Ao tentar elucidar as tendências e possibilidades que se inscrevem nesse cenário político acelerado e instável, a literatura política tem traçado paralelos da atual situação com outros momentos da história nacional (década de 1930, por exemplo) em busca de revigorados potenciais explicativos. Dentre eles, uma questão que tem sido frequentemente tomada como parâmetro é o ensaio de recriação institucional que os fenômenos políticos recentes parecem projetar, onde não à-toa são correntes vocábulos como “a nova política”, “judicialização da política”, “politização do judiciário”, “neofascismo”, “nova onda autoritária”, abrindo, assim, o cenário a semelhanças com historicidades passadas em que os ventos da mudança estavam na ordem do dia, como no contexto conturbado dos anos 1930 e no movimento das Diretas Já nos anos 1980, por exemplo. Para pensar esse quadro instável da conjuntura, optamos por mobilizar uma perspectiva de análise que escapa às leituras institucionalistas – referentes, no geral, aos atores políticos e partidos – que já estão muito bem representadas no campo da ciência política brasileira. Nossa premissa é relativamente simples: a conjuntura atual coloca problemas que necessitam de repertórios de ideias não restritas ao campo de experiências das instituições políticas do presente e do passado, mas que, talvez, possa ser melhor pensada se enfrentar esses últimos acontecimentos marcantes na sociedade à luz de novas concepções de historicidade. Essa inflexão na visão do tempo passa por compreender o processo histórico a partir de noções menos formalistas e, em uma palavra, com menor pretensão de homogeneidade; tarefa que é significativa tendo em vista sua recorrência no debate público e nos discursos políticos atuais. Dito de outra forma, tal operação requer afastar-se de noções historicistas e demasiado vagas como “progresso”, “evolução”, “unificação”, “unidade”, “redenção” etc. que seguidamente surgem no vocabulário contemporâneo como “novas” saídas aos problemas – e, no entanto, apenas reeditam “antigas” soluções. Nesse sentido, abandonar de vez a perspectiva moderna que percebe o progresso do tempo futuro ancorado em uma visão linear da história, regida por um telos e um sentido ascendente cujo futuro é tido necessariamente como tempo mais promissor que o presente, quando não um tempo redentor de acerto de contas com as experiências do passado, é o primeiro passo. Essa perspectiva radicada em termos de filosofia da história dos outrora ousados paradigmas epistêmico-políticos do mundo do século XIX, está bastante desgastada e não parece dar mais conta das novas complexidades do mundo de cá desde os anos 1960. Isso implica perceber que a novas formas de sociabilidade humana, organização do tempo e dos eixos de organização do modelo político, social e econômico correspondem novas concepções de temporalidade que as subjazem. Para tanto, aderir à crítica das antigas concepções – sob o rótulo de paradigmas modernos – é, em primeiro lugar, fazer o luto das certezas do passado que nos conduziram ao longo de tantas experiências sociais e, em segundo, empurrar seu deslocamento rumo a uma possibilidade de reinvenção, de modo a avançar ante o estado de melancolia que ameaça petrificar a ação política e impede o clima de mudança. Desde as famosas teses Sobre o conceito de história (1940), de Walter Benjamin, já sabemos que a história não se desenrola no “tempo homogêneo e vazio” de continuidade ad eternum, como linha progressiva e acumulativa, mas é atravessada a todo momento por intervenções e acontecimentos contingenciais – uma explosão de “agoras” (tese XIV) – que desafiam a lógica explicativa e a ideia de um fluxo unívoco corrente. Pensar sob essa perspectiva neutraliza a ideia de uma história linear, por um lado, e, por outro, a de temporalidade circular, em que basta a emergência de uma crise para propostas políticas tentarem reprisar um cenário – ainda que recém – passado, como se fosse possível retomar um ponto do passado no momento presente ou, na pior das hipóteses, simplesmente uma “volta” ao passado. Desconsidera-se, sob essa circunstância, o fato de que as condições objetivas já são outras, como constantemente tem se relativizado em discursos de lideranças políticas expressivas da oposição ao atual governo. Traduzindo essa concepção no horizonte brasileiro, implica abandonar ideias que seguidamente emergem à cena como a de retorno a um modelo vitorioso do passado (vide o “Plano Lula”, apresentado pelo PT agora em 2020), ou a reciclagem de modelos desenvolvimentistas nacionais (vide as propostas recentes de Ciro Gomes para o país). Não fica para trás a concepção formativa de uma “unidade de esquerda”, se tomada no sentido da solução de um projeto comum e unificado, quando este, sejamos justos na crítica, nem na mais dramática, do ponto de vista democrático, eleição recente do país (2018) foi capaz de existir. Portanto, não parece mais factível crer na eficácia de tais ideias e projetos. Uma linguagem, para tanto, que se paute por unificações, homogeneidades e retornos ou reciclagens de modelos vinculados à experiência histórica do passado esbarra na plasticidade do tempo presente, em que novos códigos de ação e novos modelos são demandados por amplos setores da sociedade civil, saturada que está da persistência de velhas práticas políticas e do afastamento progressivo entre sua representação e a ordem institucional na cena brasileira. Expressões como as mencionadas anteriormente manifestam uma temporalidade ora circular ora linear cujas forças estão dispostas em blocos homogêneos a que cabe um jogo de ação-reação, sendo que a concretude da situação prática exige disposição de alianças e táticas em coordenadas convergentes sem necessariamente incorrer no sonho distante de um programa comum. A realidade contemporânea é mais complexa e multifacetada que este programa calcado nos termos de uma gramática conceitual moderna do tempo permite dispor, ou seja, a premissa precisa ser, no presente, a de incorporar (não unificar em um só modelo previamente demarcado) a heterogeneidade social e a pluralidade de perspectivas que povoam as possibilidades de pensamento crítico democrático. Para avançarmos nessa direção, a política deixa de ser compreendida segundo a historicidade linear de meros desdobramentos de cenários passados, reunidos sob uma lógica causal, e à moda da velha metáfora conservadora da “arte do possível”. O que se propõe aqui é justamente abrir caminhos à concepção da política como horizonte aberto de tendências em constante construção hic et nunc – no aqui e agora, e não a inscrever em um campo encerrado. Liberar seu campo dos possíveis coloca reiteradamente o desafio de inventar novos terrenos, linhas de fuga e possibilidades de novas saídas a problemas estruturais ou mesmo aqueles postos pela conjuntura histórica. Nessa acepção, a política abre-se à dinâmica de transformações das condições dadas e permite imaginar desde o agora seu campo de possibilidades e a janela de oportunidades que ora a permeia. A imagem de uma política por ser construída em busca da articulação de novos caminhos não tem em vista uma “nova" política imune aos “pecados” do passado, na medida em que o porvir não designa necessariamente o futuro ideal nem iminente, embora o possa englobar. Pensamos, em sentido derridiano, no aporte a um estado de coisas que já é possível desde o aqui-e-agora, uma vez que as operações estão em disputa nesse exato instante. A constatação presente da necessidade de reconstrução do campo democrático, postulado bastante razoável e urgente desde as eleições de 2018, desafia a imaginação de medidas efetivas no sentido de enfrentar o compasso autoritário atual, que expôs às vísceras a micropolítica fascista que tomou conta das instituições no uso aparelhado do Estado por forças claramente destrutivas de sua institucionalidade democrática. Talvez a composição de uma frente ampla, costurada por convergências, seja um caminho promissor, como vem apontando o filósofo Marcos Nobre, sabendo da necessidade de se buscar a reconstrução do campo democrático no horizonte imediato. Contudo, sua viabilidade passa pela operação da construção de antagonismos amplos, que permita fabricar discursivamente adesões de amplos setores sociais insatisfeitos com o (des)governo atual e em defesa, substancialmente, da democracia institucional e da Constituição republicana de 1988. É disto que se trata a tarefa premente. Essa reconstrução, hoje, passa por duas frentes interpenetráveis: do plano do léxico – que estamos aqui explorando – e das instituições políticas. O golpe marcante não ocorreu (ainda, talvez?), se pensarmos com base em paralelos históricos, mas a democracia foi capturada desde dentro pelo jogo autoritário de um presidente que se amparou (e retirou sua legitimidade social) na maior crise do sistema democrático brasileiro, nutrida pela erosão de suas instituições nos últimos atribulados anos. A interrogação que fica diante desse quadro é como extrair da condição de crise atual seu potencial crítico de superação? Isto é, como mudar efetivamente as condições objetivas de uma democracia que, em seu atual estado, encontra-se em escombros? Essa a questão que – começando a ser formulada – a oposição democrática ao governo, ao que parece, ainda não sabe bem responder. Está em estado de bloqueio teórico e prático. E o retorno “seguro” e/ou a reciclagem de modelos do passado não ajuda a sair do estado de torpor melancólico. Pensemos, portanto, na crítica. A explosão de "agoras", para retomar os termos da linguagem benjaminiana, impõe que desde as mobilizações dos movimentos sociais e as articulações da sociedade civil atravessem as instituições políticas com seus repertórios de ação dispostos a nada menos que ressincronizar um afastamento que, hoje, beira perigosamente o abismo.


Daniel Machado Bruno é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Mestre em História das Sociedades Ibéricas e Americanas pela mesma Universidade (2019) e atualmente é Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da PUC-RS. Desenvolve pesquisas nas áreas do pensamento social e político brasileiro e da história intelectual. E- mail: daniel.mbruno7@gmail.com



Referências ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. In: Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, 1988, p. 5-34. ____________. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. AVELAR, Idelber. O oxímoro lulista e a implosão eleitoral da esquerda. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, jul./ago./set. 2018, p. 132-145. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Walter Benjamin – obras escolhidas, vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasili- ense, 1987 [1940], pp. 222-232. MARTINS, Rui Cunha. Simultaneidade e historicidade: sobre os processamentos contemporâneos da mudança. In: PAREDES, Marçal; ARMANI, Carlos; AREND, Hugo (orgs.). História das ideias: proposições, debates e perspectivas. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011, p. 42-58. 16

NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. Tradução de Sergio Flaksman. São Paulo: Todavia livros, 2018. ZEVALLOS, Verónica Pilar G. Derrida e a educação: o acontecimento do impossível. Dissertação (Mestrado) – Uni- versidade de Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2010, 89 f.




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