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Hitler de jet ski? Outro relato sobre a banalidade do mal

  • Foto do escritor: Grupo Editorial
    Grupo Editorial
  • 11 de jun. de 2020
  • 5 min de leitura

Josnei Di Carlo



Poliarquia - Revista de Política & Cultura

ISSN 2675-3529 - Volume 1 - ed007 - 2020

Recebido: 10.06.2020

Aceito: 11.06.2020

Publicado: 11.06.2020



“[...] Contra a ficção do Gênio Maligno oficial se impõe o minucioso relato histórico e é da boa mira neste alvo que depende o rigor do discurso.” Fortes (2012, p. 42)

Lago Paranoá, Brasília, 09 de maio de 2020. Os ocupantes de uma lancha fazem um churrasco. Aproximando-se em um jet ski, o piloto, acompanhado, ironiza: “Fazendo um churrasco aí?”. Em meio à algazarra, uma mulher, com uma voz afetada à la Moon Unit Zappa em “Valley Girl” (cf. ZAPPA, 1982), reponde: “Oh, a gente veio fazer seu churrasco”. E, ao jet ski parar ao lado da lancha, continua: “Que lindo, cara”. Após um dos ocupantes afirmar que é do setor de aviação e lamentar a redução de voos, o piloto, com voz paternal, afirma: “Se a gente não cuidar, o Brasil vai entrar em caos”. E, professoral, conclui: “É uma neurose, 70% vai pegar o vírus, não tem como. Loucura” (CORREIO BRAZILIENSE, 2020). Se não houvesse uma palavra provocando um ruído no diálogo, seria uma cena banal de pessoas comuns em um fim de semana qualquer. A palavra “vírus” bloqueia a possibilidade de a cena ter como pano de fundo um contexto de normalidade; ao contrário, é de pandemia. No dia anterior, os dados do Ministério da Saúde apontavam que o Brasil chegou a 145.328 casos de Covid-19 e a 9.897 mortes em decorrência do vírus (G1, 2020). Antes, o piloto, travestido de Presidente da República, afirmara, à entrada do Palácio Alvorada: “Estou cometendo um crime. Vou fazer um churrasco no sábado aqui em casa. Vamos bater um papo, quem sabe uma ‘peladinha’, alguns ministros, alguns servidores mais humildes que estão do meu lado” (FERNANDES; SOARES, 2020). Cancelou, mas, no dia anunciado, saboreou uma carne pingando sangue servida por anônimos enquanto passeava de jet ski. Bolsonaro sempre procura identificar sua perversidade à sociabilidade autoritária brasileira. Apesar de sua afirmação sobre os 70% estar marcada pela eugenia (cf. JORNAL DA CULTURA, 2020), está mais para um Adolf Eichmann que chegou ao poder do que um Adolf Hitler. Aproxima-se de Eichmann por ser um lúmpen, age sem motivações a não ser o progresso pessoal e familiar; afasta-se por ter se tornado protagonista afirmando sua vilania (cf. ARENDT, 1999, p. 310-311). Em uma analogia mais ao seu gosto, está mais para um Coronel Ustra do que um Marechal Castelo Branco. Sua técnica fatalista de administrar a vida e a morte de milhões de brasileiros é uma síntese entre a razão neoliberal e a mentalidade colonial. Em vez de Hannah Arendt, Francisco de Oliveira e Sérgio Buarque de Holanda nos ajudam a pensar outro relato sobre a banalidade do mal. Visando compreender o neoliberalismo em seus ensaios publicados após o Plano Real (1994), às vezes Oliveira lança hipóteses sobre o conjunto de valores que orienta a conduta dos sujeitos (cf. DI CARLO, 2020). A afirmação bolsonarista da inevitabilidade do contágio pelo vírus tem uma alta carga viral de racionalidade neoliberal. Conforme Oliveira, o neoliberalismo substituiu o “princípio da esperança” pelo “princípio da realidade”. Ao se deparar com um problema, a ação política orientada pela esperança considera-o histórico, exigindo dos atores respostas para permitir um futuro. Caso tomas- sem o problema como a realidade, congelariam o tempo histórico, destruindo a noção de futuro em nome de uma eterna presentificação a justificar o status quo(OLIVEIRA, 1998, p. 227-228). Em oposição à experiência nazista, a morte para o piloto de jet ski não é produto de uma vontade de potência. A especificidade dessa negação da vontade é produto de uma mentalidade colonial enraizada no país. Refletindo sobre as diferenças entre a colonização espanhola e a portuguesa em Raízes do Brasil, de 1936, Holanda fornece algumas pistas. Os colonos portugueses privilegiaram a vida rural em detrimento da urbana. Na medida em que a construção de cidades expressa a sobreposição do império da vontade sobre o reino da natureza, os espanhóis orientavam-se pela “ideia de que o homem pode intervir arbitrariamente, e com sucesso, no curso das coisas e de que a história não somente ‘acontece’, mas também pode ser dirigida e até fabricada” (HOLANDA, 2016, p. 168). Desejavam, portanto, tornar suas colônias nas Américas um prolongamento orgânico da sociedade metropolitana. Os portugueses, ao contrário, viam-nas como um lugar de passagem. O exemplo mais marcante é o hiato na construção de universidades pelas duas metrópoles nas Américas: enquanto a primeira universidade brasileira foi instalada após a chegada da família real portuguesa no país em 1808, os hispano-americanos contavam com elas em seus países desde o século XVI. Os traçados das cidades, por sua vez, denunciam que os espanhóis se orientavam por uma vontade de potência em controlar a natureza e que os portugueses eram adaptativos. Holanda qualifica essa plasticidade como um “realismo fundamental” em que a vida é aceita como ela é, “sem cerimônias, sem ilusões, sem impaciências, sem malícia e, muitas vezes, sem alegria” (HOLANDA, 2016, p. 195). O “princípio da realidade” da razão neoliberal fundamenta-se no “realismo fundamental” da mentalidade colonial. Assim, o diálogo do Lago Paranoá indica que se vence uma pandemia sem intervenção humana. Afinal, a morte e a vida são inerentes à natureza. Então, que 70% dos brasileiros se contaminem; e, caso isso ocorra, 1,8 milhão de mortes estimadas (DANTAS; GRANDIN; MANZANO, 2020) estarão seguindo o curso das coisas. A eugenia, com a administração bolsonarista da pandemia de Covid-19, nacionalizou-se, encontrando sua tradução em uma locução adverbial, a ser dita com a mesma informalidade de quem passeia de jet ski em um fim de semana qualquer – “E daí?”.


Josnei Di Carlo é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), em 2006; com especialização em Ensino de Sociologia, em 2010, na mesma instituição. Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em 2013. Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2018. Atualmente, também na UFSC, realiza estágio pós-doutoral, com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política (PPGSP). E-mail: josneidicarlo@hotmail.com.br



Referências ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. CORREIO BRAZILIENSE. Bolsonaro passeia de jet ski no Lago Paranoá. 09 mai. 2020. (39s). Disponível em: <https://youtu.be/CthJj2vmk3g>. Acesso em: 14 mai. 2020. DANTAS, Carolina; GRANDIN, Felipe; MANZANO, Fábio. Bolsonaro repete que 70% pegarão coronavírus; cientistas estimam 1,8 milhão de mortes se isso ocorrer. G1, Rio de Janeiro, 12 mai. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/12/bolsonaro-repete-que-70percent-pegarao-co- ronavirus-cientistas-estimam-18-milhao-de-mortes-se-isso-ocorrer.ghtml>. Acesso em: 15 mai. 2020. DI CARLO, Josnei. O jeitão neoliberal no Brasil: compêndio sobre o caráter nacional e a racionalidade neoliberal a partir de Francisco de Oliveira. Mediações, Londrina, v. 25, n. 2, mai.-ago. 2020. (no prelo) FERNANDES, Augusto; SOARES, Ingrid. Bolsonaro diz que fará churrasco para uns 30 convidados no sábado. Correio Braziliense, Brasília, 07 mai. 2020. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/poli- tica/2020/05/07/interna_politica,852555/bolsonaro-diz-que-fara-churrasco-para-uns-30-convidados-no-sa- bado.shtml>. Acesso em: 14 mai. 2020. 19

FORTES, Luiz Roberto Salinas. Retrato calado. São Paulo: Cosac Naify, 2012. G1. Brasil tem 9.897 mortes e 145.328 casos confirmados de novo coronavírus, diz ministério. G1, Rio de Janeiro, 08 mai. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/08/brasil-tem-9897- mortes-e-145328-casos-confirmados-de-novo-coronavirus-diz-ministerio.ghtml>. Acesso em: 14 mai. 2020. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. JORNAL DA CULTURA. Arnaldo Lichtenstein: “Isso se chama eugenia, lembre-se de que sistema político mundial usava isso”. 2020. (2min6s). Disponível em: <https://youtu.be/TDztePweQqc>. Acesso em: 14 mai. 2020. OLIVEIRA, Francisco de. Dominantes e dominados na perspectiva do milênio. In: OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do antivalor. Petrópolis: Vozes, p. 223-231, 1998. ZAPPA, Frank. Valley Girl. 1982. (3min54s). Disponível em: <https://youtu.be/Qb21lsCQ3EM>. Acesso em: 14 mai. 2019.




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