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Ideologias e ideias fora do tempo

  • Foto do escritor: Grupo Editorial
    Grupo Editorial
  • 27 de mai. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 11 de jun. de 2020

Thiago P. S. Mazucato



Poliarquia - Revista de Política & Cultura

ISSN 2675-3529 - Volume 1 - ed001 - 2020

Recebido: 03.05.2020

Aceito: 21.05.2020

Publicado: 28.05.2020



Desde os anos que antecederam as eleições na- cionais de 2018 no Brasil, até os dias atuais, uma certa noção do conceito de ideologia emergiu no debate público, muitas vezes de forma depreciativa, com a intenção de desqualificar as narrativas ou discursos do "outro". Para além do que aqueles que utilizaram a noção de ideologia neste sentido gostariam, esta forma se aproxima justamente da concepção marxista, que os grupos que ora fazem uso deste conceito procuram criticar. Para Karl Mannheim, que publicou em 1929 o livro Ideologia e Utopia, o conceito de ideologia tinha o sentido de qualificar (ainda que depreciativamente) o discurso ou a narrativa do outro, em graus variados, e também de orientar a ação dos indivíduos que eram os seus portadores. Mannheim dizia, por exemplo, que ao se classificar apenas uma parte do pensamento do outro como falha, defeituosa, mas sem que se desqualifique a capacidade desse outro de produzir pensamentos corretos, se está diante de um tipo de ideologia parcial. Por outro lado, quando se desqualifica toda a estrutura de pensamento do outro, concebendo-o como incapaz de produzir qualquer pensamento válido, trata-se, portanto, de um tipo de ideologia total. Com esta demarcação, Mannheim procurou estabelecer uma modulação, uma gradação, ao conteúdo do pensamento que deveria ser considerado como ideológico. Paul Ricoeur, em A ideologia e a utopia, ao comentar sobre o conceito de ideologia para Mannheim, afirma que se trata de um tipo de pensamento em incongruência com a realidade, por ser, sempre, uma concepção sobre o pensamento do outro, feita a partir da perspectiva ou da visão de mundo de um "eu". Mannheim não desconsiderava este aspecto ao dizer, por exemplo, que um determinado indivíduo, ao classificar o pensamento de outro como sendo ideológico (parcial ou total), o fazia a partir de uma visão de mundo (Weltanschauung) que era, por sua própria natureza, um enquadramento social à forma de pensar dos grupos, ou seja, a presença do elemento coletivo modelando o estilo de pensamento dos indivíduos que pertencem a grupos específicos. Muito do que se vê, atualmente, sobre as disputas de narrativas num plano público, em que se acusam determinadas visões de mundo como ideológicas, podem ser compreendidas à luz desta concepção de ideologia de Mannheim. A "ideologia de gênero" ou mesmo a acusação de doutrinação ideológica por parte de professores, podem ser compreendidas como disputas de narrativas ideológicas, de acordo com os elementos da Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim. Vejamos, mais detidamente. Ao acusar de "ideologia de gênero" a ideia de se discutir, de modo geral, a sexualidade, os grupos sociais que acusam tal discussão como sendo de natureza ideológica (com a adjetivação "de gênero"), fazem-no a partir de um repertório que é próprio a eles próprios. As suas próprias noções de moralidade concebem o mundo de uma determinada forma. Aquilo que escapa a esta forma, enquadra-se, na concepção dos indivíduos destes grupos, como constituindo uma narrativa ideológica. Neste exemplo, verifica-se com algum grau de clareza os elementos da Sociologia do Conhecimento de Mannheim. O primeiro elemento seria a visão de mundo desse grupo (assentada numa certa noção de moralidade, com as consequentes normatizações que estabelecem o dever ser no mundo para todo indivíduo que se considerar pertencente a este grupo, que chamaremos aqui de grupo-origem). Feito isso, concebem os indivíduos de outros grupos sociais (que chamaremos, aqui, de grupo-alvo), que pensam sobre o mesmo universo de fenômenos que a moralidade do grupo-origem, de forma diversa, como possuindo algum grau de incapacidade de compreensão do mundo (claro, do mundo entendido da forma que o grupo-origem). Ao classificar de ideológica a concepção de mundo deste grupo-alvo, procura-se atribuir algum grau de incongruência com a realidade aos pensamentos do grupo-alvo. Contudo, como Peter Berger e Thomas Luckmann afirmam em A construção social da realidade, uma das características da modernidade (assim compreendida a partir do Renascimento, que se intensificam cada vez mais com a globalização atual) consiste justamente na multiplicidade de visões de mundo sobre um mesmo objeto, fato, processo. Isso significa que grupos sociais diversos, como pensava Mannheim, tendem a cada vez mais produzirem interpretações distintas sobre os mesmos fenômenos. Pensemos, por exemplo, no caso de um fenômeno situado no âmbito social, no escopo da morali- dade, como a sexualidade. Diferentes grupos sociais podem conceber a sexualidade de formas distintas. Isso não seria um problema, mas sim uma característica fundamental da modernidade. Torna-se um problema quando as visões de mundo destes diferentes grupos sociais entram em conflito sobre o ser e o dever ser no mundo. Quando isso acontece, certamente, afeta-se em graus distintos o que se pode considerar como um dos pilares da modernidade republicana, ou seja, a concepção do que é, de fato, o ambiente público. Não podem ser confundidas como sendo de mesma natureza as concepções que os indivíduos fazem sobre as coisas de seu ambiente pessoal e sobre as coisas do ambiente público, e a disputa ideológica contemporânea parece assentar-se nesta confusão ou transportação de concepções particulares para ambientes públicos. No Brasil, em particular, com uma tradição de cultura política em que esta fusão entre o que é público e o que é privado possui uma longa história, não se deve compreender como algo novo este tipo de procedimento, mas talvez haja algum ganho compreensivo ao se buscar identificar as origens e as formas com que es- tes arranjos políticos ocorreram ao longo do tempo.

De pronto, pode ser mencionado o coronelismo, talvez o caso mais exemplar e cristalino de cruzamento indevido das fronteiras entre o público e o privado. Ainda que ancorado numa configuração que procurava atribuir algum verniz institucional à prática de apropriação privada dos bens públicos, o coronelismo, talvez pelos traços de um ethos profundo da brasilidade, adquiriu enorme capacidade e flexibilidade de se reinventar, ao ponto de se falar, atualmente, de práticas neo-coronelistas. Mas de uma coisa o coronelismo não pode ser acusado. Trata-se do fato de ser uma ideia e uma prática genuinamente brotadas da cultura política de seu tempo. Isso, em nada, retira do coronelismo os seus aspectos perniciosos para a construção de uma cultura política republicana, uma vez que atua em sentido totalmente oposto ao do bem comum. Elementos egoísticos poderiam ser identificados tanto nas concepções e práticas coronelistas, enquanto cultura política no Brasil, quanto nas concepções ideológicas de fenômenos do ambiente privado que são transplantados para a arena pública. No coronelismo, pela apropriação explícita de bens públicos pelos entes privados, retirando da coletividade o direito de usufruir destes bens. Na ideologização de fenômenos do ambiente público, à exemplo da moralidade, pela tentativa de impor à sociedade como um todo uma concepção de mundo particular de um grupo-origem específico. Salta à vista, nas utilizações atuais do conceito de ideologia, não a questão do grau de incongruência com a realidade (seja por parte do grupo-origem ou do grupo-alvo), mas um certo desconforto pela incongruência destas concepções com aquilo que talvez possa ser considerado como um patrimônio da cultura cívica republicana, construída durante mais de dois longos séculos, que é a acomodação máxima do maior número de indivíduos nos ambientes coletivos, com a decorrente restrição pública de discursos de ódio. Pensado desta forma, as narrativas ideologizantes dos tempos presentes não seriam ideias fora de lugar, mas com ideias fora do tempo.


Thiago P. S. Mazucato é graduado em Sociologia, Mestre em Ciência Política (UFSCar), Doutor em Ciências Sociais (UNESP), é pesquisador do Laboratório de Política e Governo (LabPol/UNESP), líder do Grupo de Pesquisa "Sociologia, Política e Cidadania", editor-chefe da Revista Sociologia, Política e Cidadania. Atualmente é docente na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Penápolis, onde atua como Diretor do Centro de Educação e Ciências Humanas. E-mail: t.mazuca@gmail.com






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