Juventude rural e a construção do direito à cidade
- Grupo Editorial
- 10 de nov. de 2023
- 8 min de leitura
Miqueas Marques de Lima; Maria Angélica de Oliveira Magrini; Joelson Gonçalves de Carvalho
Poliarquia - Revista de Política & Cultura
ISSN 2675-3529 - Volume 3 - ed002 - 2023
Recebido: 14.09.2023
Aceito: 04.10.2023
Publicado: 11.11.2023
Partimos do pressuposto de que o conceito de direito à cidade pode ser trabalhado com o propósito de elucidar as problemáticas que permeiam o cotidiano do jovem rural que tem como realidade a dualidade da vida que transita, dialeticamente, entre o campo e a cidade. Essa perspectiva é um desdobramento da concepção de Souza (2015) quando ele afirma que a compreensão do direito à cidade deve perpassar necessariamente pelo questionamento e pelo enfrentamento prático do "modelo (anti)civilizatório" capitalista em escala planetária. Para o autor (2015), o que está em jogo é o direito ao planeta, fazendo com que a análise da busca pelo direito à cidade tenha que se situar numa escala mais ampla do que a circunscrita à cidade em si.
Esse pensamento ganha respaldo na concepção de sociedade urbana produzida por Lefebvre (1999), que entende que caminhamos para um período histórico no qual as questões urbanas prevalecerão na condução da sociedade, sem, contudo, extinguir o campo e o rural, mas sim inserindo-os num continuum espacial que os integra à cidade e ao urbano. Para nossa análise, a categoria juventude rural se torna central a partir das relações que ela estabelece com a cidade, se constituindo como uma força participante/produtora da dinâmica urbana, influenciando e sofrendo influência dos processos gerais da urbanização.
Castro (2009) aponta que a juventude se torna então questão chave no debate dos movimentos sociais e para a reforma agrária, tendo em vista que esses jovens reivindicam direitos sociais, se organizam e criam estratégias, enquanto se constitui como movimento, alçando representatividade e força política, em um contexto de no qual a agricultura familiar busca se fortalecer em meio a uma lógica de desenvolvimento rural hegemonizada pelo agronegócio (CARVALHO, 2015).
O saber social diferenciado, sobretudo elaborado a partir da dimensão política da luta pela reforma agrária confere ao assentamento sua especificidade, que se desdobra na formação de jovens militantes nos movimentos sociais. No entanto, vale ressaltar, que a relevância atribuída a juventude rural na dimensão dos movimentos sociais, não reverberou em sua plena dimensão no ambiente acadêmico, ao mesmo tempo em que a categoria ganha evidência como ator político, poucos estudos foram realizados, se tornando um conceito em construção dentro do ambiente acadêmico (CASTRO, 2007), revelando o quanto a categoria juventude rural ainda é invisível, em diferentes sentidos. Segundo a autora:
É uma categoria minoritária “dentro” da juventude. Quando retomamos os dados do PNAD essa análise faz algum sentido. Os dados apontam que a população de 15 a 29 anos é de 49 milhões de pessoas e representa 27% da população. Por outro lado, 4,5% seriam jovens rurais. No entanto, ainda que pareça pouco no universo total, estamos falando de 8 milhões de pessoas. Isso sem entrarmos na problematização da própria definição de rural e urbano. Assim, se fossemos pensar a juventude rural como categoria específica e de pouca expressão numérica na sociedade brasileira, mesmo esse eixo deveria ser revisto. É uma população de 8 milhões de jovens! Nesse sentido, a invisibilidade que marca a juventude rural deve ser problematizada. (CASTRO, 2007, p. 129)
Na esfera governamental, isso se dá, devido aos poucos incentivos, como políticas públicas que atendam os anseios do jovem camponês e invisível como sujeito histórico que produz e se apropria do espaço geográfico, seja ele urbano ou rural, por exemplo. Brumer (2009), ao abordar sobre o processo de migração dos jovens para a cidade, ressalta que o mesmo é resultado de vários fatores de exclusão presentes no campo, bem como a falta de segurança financeira, as sazonalidades na produção agrícola, sendo a participação do jovem na maioria dos casos nas tomadas de decisões da família pouca ou quase nula, no que se refere às atividades desenvolvidas na propriedade familiar.
Consequentemente, isso faz com que o jovem que reside no campo se veja obrigado, muita das vezes, a sair do lugar onde suas relações humanas acontecem, para disputar por espaço nas cidades, sendo através da comercialização de produtos agrícolas produzidos pela família, ou através do emprego na cidade, ou até mesmo do ingresso em uma universidade na cidade, aumentando de forma considerável o êxodo rural, resultando em um duplo processo de desterritorialização e reterritorialização da identidade rural desse jovem (SOUZA, 1995).
O avanço do modo de produção capitalista tem acelerado o ritmo das transformações que perpassam o espaço agrário e a realidade urbana, reconfigurando a paisagem, destruindo, construindo e, sobretudo reconstruindo o território, revelando novos sujeitos que disputam o território na luta contra a lógica hegemônica do capital. No cotidiano do jovem rural contemporâneo que se depara com essa conjuntura, os conflitos se acirram, reverberando em diferentes dimensões da vida do jovem rural, (no âmbito do trabalho, da escolaridade, da sucessão geracional, da dimensão coletiva do assentamento e da reforma agrária, dos espaços públicos e de encontros, do lazer e da cultura etc), que tem como palco e pauta o espaço rural e o espaço urbano, sobretudo porque é justamente nesses espaços em que a realidade da juventude rural acontece de forma dialética.
Nas palavras de Scopinho, (2013, p. 18) esses jovens seriam como “andorinhas”, sendo “aquele que vai e vem no percurso assentamento-cidade-assentamento em busca de trabalho e moradia, onde houver um jeito melhor para sobreviver”. A autora também afirma que “ao contrário do que dizem as cartilhas dos movimentos sociais e os documentos governamentais, cidade e campo não são mundo dicotômicos e os jovens têm sido capazes de explorar cada um deles do modo conveniente” (SCOPINHO, 2013, p. 14).
E é neste momento que acreditamos ser interessante abordar sobre a relação em que a juventude rural estabelece com a cidade, doravante, porque o diálogo que a juventude rural constrói com a cidade lhe permite ampliar a sua capacidade de se reproduzir/produzir novos espaços, e por conseguinte, participa das transformações urbanas e contribuí para a constituição de lugares e para a produção de territorialidades nas cidades, sem contudo perder sua identidade política de jovem rural, pelo contrário, sua identidade política é acionada e afirmada para lidar com as problemáticas da urbanização, como aponta Castro et al. (2009), quando diz:
Esse jovem rural se apresenta longe do isolamento, dialoga com o mundo globalizado e reafirma sua identidade como trabalhador, camponês, agricultor familiar, acionando diversas estratégias de disputa por terra e por seus direitos como trabalhadores e cidadãos. Assim, jovem da roça, juventude rural, jovem camponês são categorias aglutinadoras de atuação política. (CASTRO et al., 2009. p. 05).
Essas transformações no espaço urbano por parte dos jovens rurais se manifestam de diferentes formas, de acordo com suas distintas possibilidades de apropriação. Têm como pano de fundo as diversas realidades em que esses jovens estão inseridos e suas especificidades, assim como a condição socioeconômica, gênero, etnia, raça, prática religiosa, orientação sexual, além das conexões com diferentes grupos sociais. (HONWANA; BOEK, 2005).
Suas espacialidades revelam contrastes, nos quais a apropriação do espaço urbano se dá de forma diferente entre jovens que são oriundos do campo, se comparada à vivência dos jovens que sempre estabeleceram residência na cidade. O jovem do campo, que de alguma forma contribui na produção do espaço urbano, sendo a partir do emprego fixo na cidade, ou por estar matriculado em uma escola ou universidade, ou em seus momentos de lazer quando está no cinema ou em uma pizzaria, traz consigo suas experiências de vida, suas subjetividades, suas concepções de cidade que se difundem em suas relações sociais com as pessoas dos seus círculos sociais de trabalho, de estudo e de amizade.
Ao passo que compartilha suas experiências de vida no campo, está suscetível às influências das experiências empíricas e simbólicas compartilhadas por seus amigos e interlocutores da cidade, por exemplo. A dialética da transformação urbana se dá pois ao mesmo tempo em que transformam o espaço, a partir de sua apropriação, os jovens também são transformados por meio de suas experiências nos espaços da cidade. Nesse sentido, evidencia-se o caráter de troca existente na vivência dos jovens rurais na cidade. Troca de influências culturais, visto que ao retornar ao campo, o jovem rural volta com uma bagagem de experiências ampliada, agora ele passa a inserir em sua perspectiva do campo e da vida rural as influências culturais recebidas da cidade, posto que parte do seu cotidiano é realizado na cidade.
São imersos a essa teia de relações e permeados por subjetividades que os jovens rurais constroem suas identidades. A análise da construção do direito à cidade incorporando as relações com o campo ganha importância na medida em que as mudanças contemporâneas dificultam que estabeleçamos divisões rígidas entre esses espaços, posto que as próprias relações estabelecidas entre cidade e campo não são rígidas. Como sustenta Bagli (2006), “Não há estabelecido, entre campo e cidade, uma oposição sem complementaridade, como se houvesse uma independência total entre eles. Há, sobretudo, uma contradição, fortalecida e complementada pela diferença” (BAGLI, 2006, p. 75).
Acreditamos assim, que essas transformações que articulam o urbano e o rural a partir da produção de segmentos marginalizados na sociedade capitalista devem gerar também lutas articuladas. Se consideramos o pensamento de Harvey (2014, p. 30) para o qual reivindicar o direito à cidade significa reivindicar "algum tipo de poder configurador sobre os processos de urbanização, sobre o modo como nossas cidades são feitas e refeitas, e pressupõe fazê-lo de maneira radical e fundamental", precisamos pensar na urbanidade de maneira ampla, incluindo nela os moradores do campo, que estabelecem relações crescentes com as cidades, precisando também serem respeitados e incluídos no ato de produzir cidades mais justas e igualitárias.
Assim, nosso argumento é que não é possível, no atual estágio do processo de urbanização, construir o direito à cidade sem incorporar as dinâmicas do campo, visto que os limites entre essas espacialidades se tornam tênues, fazendo com que a articulação seja necessária. Deste ponto de vista, defendemos que os moradores do campo também devem ter direito à cidade, vivenciando seus espaços e participando de sua produção.
Referências
BAGLI, P. Rural e Urbano nos Municípios de Presidente Prudente, Álvares Machado e Mirante do Paranapanema: Dos Mitos Pretéritos às Recentes Transformações. 2006. 207f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Presidente Prudente, 2006.
CARVALHO, J. G. Economia Agrária. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2015.
LEFEBVRE, H. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
BRUMER, A. A problemática dos jovens rurais na pós-modernidade, Em: Juventude Rural em perspectiva, Rio de Janeiro, Mauad X, 2007.
CASTRO, E. Entre ficar e Sair: uma etnografia da construção social da categoria jovem rural. Tese doutorado. PPGAS, Museu Nacional: UFRJ, 2005.
CASTRO, E. G.; MARTINS, M.; ALMEIDA, S. L. F.; RODRIGUES, M. E. B.; CARVALHO, J. G. Os jovens estão indo embora? Juventude Rural e a construção de um ator político. Rio de Janeiro: MAUAD X, 2009.
HONWANA, A.; BOECK, F. D. Makers and Breakers: Children & Youth in Postcolonial Africa. Dakar, Codesria, 2005.
SCOPINHO, R. A. Serei também uma andorinha? sobre as condições de inserção e permanência de jovens em assentamentos rurais. In: SEVERI, F. C.; ANDRADE Jr., SIMONETTI, M. C. L. Assentamentos rurais e cidadania: a construção de novos espaços de vida. Marília: Laboratório Editorial, 2011.
HARVEY, D. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
SOUZA, M. L. Dos espaços de controle aos territórios dissidentes. Escritos de divulgação científica e análise política. Rio de Janeiro: Consequência, 2015.
Autores
Miqueas Marques de Lima é Graduado em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia e pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão Rural (NuPER). E-mail: miqueasmarques506@gmail.com
Maria Angélica de Oliveira Magrini é Licenciada (2005), Mestre (2009) e Doutora (2013) em Geografia pela Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" (UNESP), câmpus de Presidente Prudente. Professora da Universidade Federal de Uberlândia, câmpus Pontal - Ituiutaba e pesquisadora dos grupos: GASPERR - Grupo de Pesquisa "Produção do Espaço e Redefinições Regionais" (UNESP, Presidente Prudente) e Observatório das Cidades (UFU, Ituiutaba).
Joelson Gonçalves de Carvalho é Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (DCSo/UFSCar) e pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão Rural (NuPER). E-mail: joelson@ufscar.br
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