Ivan Henrique Mattos e Silva
Poliarquia - Revista de Política & Cultura
ISSN 2675-3529 - Volume 1 - ed002 - 2020
Recebido: 03.05.2020
Aceito: 21.05.2020
Publicado: 29.05.2020
O Brasil vive uma situação aparentemente distópica: não apenas está em meio à maior pandemia do último século (pelo menos desde a gripe espanhola), mas, sobretudo, encontra-se em uma conjuntura em que sua principal liderança (o Presidente Jair Bolsonaro) defende e advoga o exato oposto do que é consensual nos circuitos peritos e acadêmicos. E o que é ainda pior: com significativa ressonância em parcelas consideráveis da opinião pública. Desconsideradas as limitações socioeconômicas estruturais que dificultam o isolamento social, como é possível que o discurso negacionista se sobreponha às recomendações científicas e ao medo amplificado pela incisiva cobertura da mídia nacional? Para responder a esta pergunta é fundamental compreender minimamente os fundamentos sobre os quais está edificado o arcabouço ideológico do bolsonarismo. O Weltanchaaung(1) bolsonarista se sustenta, em grande medida, na leitura de mundo construída pelo grande intelectual orgânico da nova direita: o escritor Olavo de Carvalho. Embora em variados graus e sentidos, o fato é que o núcleo duro do argumento olavista a respeito de sua leitura da trajetória política e cultural brasileira é compartilhado pela quase totalidade dos intelectuais vinculados ao campo neoconservador (e mesmo “liberal”) brasileiro (CHALOUB, PERLATTO, 2015). Vale ressaltar, ainda, que, embora a mídia tradicional tenha construído uma narrativa – geralmente aceita, dentro e fora da imprensa – de que haveria, no governo Bolsonaro, uma ala mais ideológica, ou olavista – composta pelos filhos do Presidente e alguns ministros –, e outra ala mais pragmática (ou racional) – que circunda os militares –, o fato é que eixos estruturantes da cosmovisão de praticamente todos os membros do governo têm suas raízes em teses advindas das obras de Olavo de Carvalho (que, ao menos desde o final da década de 1990, foi presença recorrente em palestras, conferências e cursos ministrados no Clube Militar, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e na Escola Superior de Guerra), popularizadas a partir de um esforço paulatino de novos agrupamentos políticos brasileiros que se organizaram primeiramente em contra-públicos nas redes sociais e, aos poucos – em especial após o julgamento do Mensalão e os eventos de 2013 – foram ganhando a esfera pública (ROCHA, 2018; PINHEIRO-MACHADO, 2019). Cinco pilares são estruturais para a compreensão dos fundamentos ideológicos do bolsonarismo, ancorados na narrativa de Olavo de Carvalho: o conspiracionismo, o anti-intelectualismo, o anti-elitismo, a performaticidade retórica disruptiva e a centralidade estratégica da guerra cultural para a disputa política. Esses cinco elementos estão articulados em um protótipo de metanarrativa razoavelmente coesa e dotada de considerável potencial de agregação social. Vejamos em quê consistem tais pilares. O conspiracionismo se sustenta em um binômio: por um lado, na premissa de que há verdades ocultas que só são apreensíveis por intermédio de um rompimento com as estruturas cognitivas e epistemológicas hegemônicas, e, por outro, na concepção da existência de uma batalha subterrânea e camuflada entre duas categorias sociológicas que operam como significantes vazios: nós e eles – esta última, suficientemente genérica para compreender todo tipo de grupo social “indesejado” (comunistas, petistas, feministas, homossexuais, funcionários/as públicos/as, professores/as etc.). Este pilar se torna possível em função de um certo apriorismo de validade epistemológica defendido pelo campo neoconservador. Ou seja, a direita política possuiria (segundo esse argumento) um “acesso privilegiado à verdade”, oriundo de dois fatores: por um lado, ao se focar no devir histórico, ou na normatividade de um futuro possível (e desejável), a esquerda padeceria de um delírio demiúrgico, enquanto que, por sua vez, a direita estaria mais preocupada em descrever a realidade observável e apreender o mundo como ele de fato seria (injusto, desigual, hierárquico e caótico)(2); por outro lado, a esquerda tampouco estaria preocupada com a questão das verdades objetivas, e, imersa em um relativismo histórico e epistemológico absoluto, encontraria na teoria um mero estímulo retórico à ação prática (CARVALHO, 1994, 1999). Derivado do primeiro pilar, o anti-intelectualismo é também central para o arcabouço ideológico do bolsonarismo: segundo Carvalho (1994), a esquerda brasileira – na esteira da derrota da luta armada na virada da década de 1970 para a década de 1980 – teria operado uma mudança de estratégia, abrindo mão da luta direta pela conquista do Estado e, em seu lugar, assumindo como central uma conquista anterior de hegemonia cultural e ideológica. Assim, a conquista dos aparelhos privados de hegemonia (GRAMSCI, 2001) – no caso, as universidades, instituições de pesquisa, mídia e órgãos de produção de bens culturais – teria se convertido em objetivo central, devidamente atingido (segundo o escritor) em função da pouca preocupação dos militares com a “esquerda acadêmica” (CARVALHO, 1998). É importante salientar que o anti-intelectualismo não se confunde com irracionalismo: face ao monopólio da esquerda na cultura e nas ciências, a direita precisaria de outras instâncias de produção e legitimação de novos regimes de verdade, encontrando, nas redes sociais, um terreno fértil nesse sentido (ROCHA, 2018). Embora Olavo de Carvalho se defina como um conservador, e, inclusive, mobilize autores clássicos do conservadorismo – em especial Ortega y Gasset – para a fundamentação de suas teses e críticas à universidade e à esquerda, o autor se afasta bastante do elitismo típico do campo. Se, para Ortega y Gasset (1987), a ascensão volitiva e intelectual do cidadão médio – propiciada pelo igualitarismo encampado pelas metanarrativas da modernidade – era o grande problema do tempo presente, Carvalho (1998) faz uma defesa epistemológica enfática do senso comum balizado pelo que o autor chama de “evidências intuitivas” e uma defesa política do homem-massa. O mesmo se verifica no bolsonarismo: segundo Alonso (2018), o cerne de sua liderança não advém de qualidades distintivas ou de habilidades acima da média. Bolsonaro, portanto, não lideraria por virtú, mas por ser a representação arquetípica do cidadão mediano, medíocre. Suas defesas ética e estética do homem comum, sincero e tosco – em contraposição direta ao elitismo esnobe dos intelectuais e acadêmicos – compõe parte central da comunidade moral bolsonarista (ALONSO, 2018). O quarto pilar do campo é o deboche e o politicamente incorreto como estratégias retóricas. O deboche argumentativo possui uma função dupla: facilita a penetração e o enraizamento do discurso nos contra-públicos, definidos, segundo Rocha (2018, apud WARNER, 2002), por uma performaticidade disruptiva; e funciona como mecanismo de silenciamento do adversário, inviabilizando qualquer tentativa de dialogia – essencial para a disputa democrática de ideias (MARQUEZ ET AL, 2019). Aqui o conspiracionismo volta a assumir centralidade explicativa: segundo Carvalho (1994, 1998, 1999), a esquerda não apenas teria assegurado o monopólio da produção acadêmica e cultural do Brasil, bem como da própria definição dos termos do debate público. Ela teria, ainda, elaborado uma amarra argumentativa a qualquer tipo de discurso contra-hegemônico: a normatividade do politicamente correto. Assim, o politicamente correto assume naturalmente uma aura de insurgência e resistência ante a dominação cognitiva e intelectual da esquerda (DI CARLO, KAMRADT, 2018; PINHEIRO-MACHADO, 2019). Ninguém, no Brasil, encampou melhor a retórica do politicamente incorreto do que Jair Bolsonaro. O quinto e último pilar ideológico do campo mobilizado aqui diz respeito à centralidade da esfera cultural como lócus privilegiado de disputa política. Esta centralidade se assenta tanto em um diagnóstico como em um prognóstico: Carvalho (1999) sustenta, tomando emprestadas teses também defendidas por dois autores paleoconservadores dos Estados Unidos – Paul Gottfried e Patrick J. Buchanan (SEDGWICK, 2019) –, que a grande arma da esquerda contemporânea para a efetivação de seus projetos autoritários seria a subversão dos valores tradicionais sobre os quais a civilização ocidental se sustentaria: o sexo convencional e a família tradicional. Para tanto, a esquerda mobilizaria as pautas identitárias (junto aos movimentos negro, feminista e LGBT) como arma política travestida de construção de direitos. Em razão de tal diagnóstico, à direita caberia a assunção da defesa moral e ética dos valores tradicionais como bandeira central de disputa política. Tem-se, portanto, o seguinte cenário interpretativo: as universidades e organizações acadêmico-científicas estão monopolizadas pela esquerda – como parte de uma “estratégia gramsciana” para a conquista do poder de Estado –, que, por definição, está axioma- ticamente equivocada (seja por desvio epistemológico ou estratégia política); sendo assim, não apenas os discursos construídos e divulgados a partir dessas instituições estão equivocados, como servem a propósitos políticos escusos e subterrâneos; cabe, portanto, ao cidadão brasileiro, informar-se pelos meios nos quais são produzidos os regimes de verdade não contaminados pelos tentáculos da conspiração: as redes sociais. Portanto, apontar que o Presidente da República age na contramão das recomendações dos especialistas (nacionais e internacionais) possui pouco efeito no processo de convencimento, já que seria esta a própria razão de suas virtudes. É alguém que luta contra o “sistema”, contra tudo e contra todos na tentativa de subverter a conspiração em defesa da família tradicional e dos valores civilizatórios ocidentais. Sua rusticidade sincera seria a própria comprovação da justeza de suas intenções. Romper com os efeitos deletérios do negacionismo bolsonarista passa, necessariamente, por uma desconstrução epistemológica de seus fundamentos ideológicos. O recuo confortável ao lugar-comum da desqualificação cognitiva é um aliado de primeira hora da barbárie que se avizinha.
Ivan Henrique de Mattos e Silva é graduado em Ciências Sociais, Mestre em Ciência Política (UFSCar), Doutor em Ciências Sociais (UNESP), é coordenador do Grupo de Pesquisa "Direitos Sociais, Cultura e Cidadania" (UNIFAP). Atualmente é docente na Universi- dade Federal do Amapá. E-mail: ivanhmsilva@gmail.com
(1) Cosmovisão, na chave weberiana. Princípios que embasam a concepção de mundo. Ver Weber (1992).
(2) Fenômeno já observado por Mannheim (1972).
Referências
ALONSO, Angela. A comunidade moral bolsonarista. In: __________. Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. CHALOUB, Jorge; PERLATTO, Fernando. Intelectuais da "nova direita" brasileira: ideias, retórica e prática política. Anais do 39o Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, 2015. DI CARLO, Josnei; KAMRADT, João. Bolsonaro e a Cultura do Politicamente Incorreto na Política Brasileira. Teoria e Cultura, v. 13, n. 2, p. 55-72, 2018. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. MARQUEZ, Allan Cancian; BERGAMINI, Ana Paula Miranda Costa; LIMA, Fábio Luiz Malini de. Os Intelectuais e as Instituições de Direita no Brasil: o Deboche e a Cultura do Lacre como parte da estratégia desses atores políticos. XXIV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste. Vitória, 2019. ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1987. PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior – o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Editora Planeta, 2019. SEDGWICK, Mark. Introdução. In: __________ (org.). Key Thinkers of the Radical Right – Behind the New Threat to Liberal Democracy. Nova Iorque: Oxford University Press, 2019. WEBER, Max. A objetividade do conhecimento na ciência social e na ciência política. In: __________. Metodologia das Ciências Sociais, vol. 1. São Paulo: Editora da Unicamp, 1992.
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