O colonialismo digital no capitalismo de vigilância: a dominação pela tecnologia
- Grupo Editorial
- 11 de nov. de 2023
- 7 min de leitura
Ana Luiza Sabino de Sá e Silva; Lucas Ribeiro Vaz Vitorino
Poliarquia - Revista de Política & Cultura
ISSN 2675-3529 - Volume 3 - ed003 - 2023
Recebido: 30.08.2023
Aceito: 04.10.2023
Publicado: 11.11.2023
O extrativismo predatório, muito característico da exploração colonial praticada a partir do século XV nas colônias americanas, surge como uma modalidade de acumulação determinada pelas demandas dos centros metropolitanos do capitalismo nascente. Para Acosta (2012), desde essa época, certas regiões especializaram-se na extração e na produção de matérias primas, enquanto outras puseram-se no papel de produtoras de manufaturas; as primeiras exportavam a natureza, as segundas a importavam. Esse é um cenário que, diferentemente do que possamos pensar, propagou-se ao longo da história, e mantém-se firmemente atrelado à configuração atual da distribuição de poder na hierarquia global. Um grupo de países continua na posição de exploradores, enquanto outros são relegados à posição de submissão, vistos meramente como fonte de matéria prima - ainda que, hoje, não sejam metais preciosos ou madeira maciça os produtos mais procurados.
Este é um trabalho que pretende estudar a forma mais contemporânea da colonialidade, o que é chamado de colonialismo digital. Identificada como mecanismo aprimorado de dominação, será estudada a coleta, a manipulação e a utilização de dados pessoais informatizados, que influencia pensamentos e atitudes, e produz efeitos econômicos, culturais e sociais. Por se tratar de fenômeno intimamente relacionado à modernidade globalizada e globalizante, a discussão torna-se extremamente relevante, visto que contemporânea; e necessária, visto que presente especialmente em países do Sul global como o Brasil.
O objetivo do trabalho, partindo de tais diretrizes, é estudar a possível relação entre o uso de dados pessoais e a atuação neocolonial de nações dominantes em relação a países dominados, em especial no que se refere à cooptação, utilização e apropriação dessas novas matérias primas. Pretende-se demonstrar se a hegemonia epistemológica operada por esse grupo de países também se manifesta no uso indiscriminado de seus bens naturais e informacionais para finalidades industriais ou comerciais. A partir disso, o recorte adotado procura entender como esse mecanismo de funcionamento pode revelar uma nova forma de colonialismo, praticado a nível epistemológico, pelas nações hegemônicas. Para essa pesquisa, será utilizada a metodologia de revisão bibliográfica, que viabilizará a análise qualitativa de produções acadêmicas relacionadas ao tema, buscando compreender suas características e peculiaridades.
O colonialismo digital enquanto fenômeno
À forma de expressão do imperialismo ligada à apropriação de dados pessoais por grandes corporações do Norte Global dá-se o nome de colonialismo digital. Representando a o auge da evolução dos mecanismos de exploração colonialista, pode ser definido como um processamento massivo de dados, que combina práticas extrativas predatórias do colonialismo histórico com os métodos de quantificação da computação em um processo que se estrutura à medida que pessoas e coisas vão se vinculando à infraestrutura de conexão, de acordo com Couldry e Mejías (2019). Por meio da conversão da vida humana em dados, empresas de tecnologia, geralmente sediadas no Norte Global, impõem ao sul sua visão de mundo, moldadas por aplicativos, algoritmos e redes sociais que gerenciam e operam de acordo com parâmetros pré-estabelecidos (BORGES, 2021). Para Borges (2021, p. 49),
Essa nova forma de colonialismo emerge da apropriação e extração de recursos sociais para fins lucrativos, e diferentemente do colonialismo histórico, em que as pré-condições foram criadas para o que é conhecido como capitalismo industrial, o colonialismo digital ou de dados surge no pano de fundo de toda a história entrelaçada do colonialismo e do capitalismo. Dito isso, o Big Data não representa apenas um novo uso para a tecnologia, mas é um componente essencial para o colonialismo digital que se baseia na lógica da acumulação intencional para produzir lucro a partir da captura de dados e de informações de usuários que utilizam determinados serviços em ambientes digitais.
Esse controle operado pela dominação das plataformas e dos dados digitais, ferramentas indispensáveis ao funcionamento do mundo tal como o conhecemos, demonstra como as consequências do colonialismo perduram até os dias atuais, embora as tecnologias tenham transformado suas características, permitindo a implementação de algoritmos em espaços onde a falta de regulamentação e de governança perpetra a exploração de vulnerabilidades (BORGES, 2021). Nesse cenário, as grandes empresas de tecnologia utilizam sua hegemonia digital para coletar os dados dos usuários de aplicativos e softwares, extraídos continuamente com o intuito de geração de lucro. Assim como praticamente não há escolha em relação à utilização dessas ferramentas, essenciais no mundo globalizado e conectado, “(...) não há a opção de impedir que seus dados sejam capturados, o que sugere qual é realmente o produto dessas plataformas: os dados de seus usuários” (FERREIRA, 2021, p. 55).
Esse consentimento concedido tacitamente pelo usuário para o rastreamento contínuo de sua vida é a moeda de troca utilizada para a extração predatória de seus dados, aplicados para uma verdadeira modulação e controle da vida. Por meio do armazenamento e tratamento de uma quantidade enorme de informações - o que é chamado de “Big data” - as tecnologias digitais constroem uma padronização, ou “(...) um modelo preditivo de comportamento (...)”, com a finalidade de “(...) saber exatamente qual o hábito de determinada pessoa, e também poder manipulá-lo, ao ponto de modificar esse mesmo hábito, com fins determinados” (SILVA; SIQUEIRA, 2019, p. 206). Com a manipulação desses dados, é possível modular e prever as ações futuras de cada indivíduo, enquanto “(...) modelos estatísticos preditivos serviram para estimular a confiança e a adesão dos capitalistas a essa lógica” (PADILHA; FACIOLI, 2020, p. 365-366).
O procedimento que permite esse controle constante do comportamento humano está intrinsecamente relacionado ao que Zuboff (2018) chamou de capitalismo de vigilância. Segundo a autora, o diferencial desse novo modelo econômico é o fato de utilizar o comportamento humano, e não a mão de obra, como meio de produzir lucro e controle de mercado, impondo e produzindo a informação em escala massiva. Esse modelo baseia-se numa assimetria de conhecimento, na medida em que a sistematização de informações e a análise de padrões comportamentais levam a um conhecimento excessivo de alguns comportamentos humanos, que gera uma desigualdade epistêmica entre o que sabemos sobre nós mesmos e o que eles sabem sobre nós (SCASSERRA, 2021). Assim, enquanto as grandes empresas da tecnologia guardam as mais íntimas informações de bilhões de pessoas, elas não têm ideia da posição de vulnerabilidade em que se encontram, ou dos riscos ligados à má utilização de seus dados.
A grande questão é que as aplicações dos usos desses dados não se restringem ao mercado, e podem afetar de forma intensa diversos outros setores, como nos explica Borges (2021, p. 44):
O surgimento de novas Tecnologias de Informação e Comunicação, essencialmente baseadas na implementação de algoritmos de Inteligência Artificial, tem favorecido um ambiente virtual denominado infosfera, em que organismos informacionalmente incorporados (inforgs), bem como o fortalecimento do colonialismo digital perpetrado por empresas de tecnologia do Norte, proporcionam a acumulação de riquezas e lucros em detrimento das desigualdades e injustiças sociais impostas por um novo colonialismo digital hegemônico que emerge e é guiado pelo capitalismo de vigilância. (tradução nossa)
É claro que a exploração dessas informações teria contrapartidas econômicas e sociais negativas para os países não detentores das novas tecnologias da informação; o enriquecimento, no capitalismo, sempre se dá às custas do outro. O que ocorre em países como o Brasil é o aprofundamento cada vez maior da condição de colônias digitais, dependentes da tecnologia imposta pelos gigantes da tecnologia. É fato que uma característica muito relevante da internet é sua transnacionalidade, mas “(...) isso não implica que todos os dados do Brasil precisem ser daqui extraídos e levados para os data centers na Califórnia, na China ou para qualquer estrutura das corporações do mundo rico” (PADILHA; FACIOLI, 2020, p. 372), ainda mais sem que nada seja oferecido em troca.
Silva e Siqueira (2019) destacam o caráter manipulativo das ferramentas informacionais, que, além de manter as hegemonias econômicas, são capazes ainda de afetar as formas de comunicação e de relação humanas, a sensibilidade e a inteligência. E pior: podem influenciar a política e comprometer instituições democráticas, por meio da modulação dos dados com fins políticos, controlando a opinião pública, “(...) sem que isso seja transparente. A modulação é a principal técnica das plataformas, não sendo baseada no discurso, mas no controle do que se vê, se lê e se ouve” (PADILHA; FACIOLI, 2020, p. 367). Ou seja, é muito necessário que haja a regulamentação dessa prática, já que além dos riscos pessoais, ela influencia e modifica toda uma sociedade.
Considerações finais
Diante de tudo isso, pode-se concluir que a manipulação de dados pessoais gerada pelo que chamamos de colonialismo digital (Couldry; Mejías, 2019) em um contexto de capitalismo de vigilância (Zuboff, 2018) realmente representa o auge da evolução de um processo que já chamamos de colonialismo e imperialismo. Foi possível compreender que a empreitada imperialista e colonial, longe de ter sido encerrada, ainda estende sua influência a todo o globo, e continua desenvolvendo e aprimorando as ferramentas de dominação, hoje representadas pela apropriação de dados pessoais em nome da obtenção de lucros a partir de um produto que é oferecido de graça, e voluntariamente, pelos usuários: seus dados pessoais.
Mesmo que o cenário pareça desolador, ainda há saídas possíveis. Seja a partir de mecanismos que permitam que cada indivíduo tenha autonomia para decidir sobre o uso e a manipulação dos dados relacionados a ele, por meio de um direito individual à autodeterminação informativa (SILVA; SIQUEIRA, 2019), seja por meio da garantia da existência de seres humanos livres, ativistas e diversos a partir da desconexão digital (SCASSERRA, 2021), é possível o uso de tecnologias sem entregar nossas vidas às megacorporações e à hipervigilância massiva. Mesmo contra o que parece querer nos dominar e controlar, ainda resistimos enquanto seres livres que somos, e continuamos a exigir que sejamos tratados como tal.
Referências bibliográficas
ACOSTA, Alberto et al. Extractivismo y neoextractivismo: dos caras de la misma maldición. In.: Más allá del desarrollo, v. 1, p. 83-118, 2011.
BORGES, Gustavo Silveira. Decolonial thinking in Brazil: perspectives for overcoming digital colonialism through the protection of human rights. Studies in Law: Research Papers, Cracóvia, No. 2 (29), p. 43-53, 2021.
COULDRY, N.; MEJÍAS, U. A. The costs of connection: how data is colonizing human life
and appropriating it for capitalism. Stanford: Stanford University Press, 2019.
FERREIRA, Sérgio Rodrigo da Silva. O que é (ou o que estamos chamando de) ‘Colonialismo de Dados’?. PAULUS: Revista de Comunicação da FAPCOM, São Paulo, v. 5, n. 10, p. 49-61, 2021.
PADILHA, Felipe; FACIOLI, Lara. Colonialismo tecnológico ou como podemos resistir ao novo eugenismo digital – entrevista com Sérgio Amadeu Silveira. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 25, n. 48, p. 363-378, 2020.3
SCASSERRA, Sofía. La desigualdad automatizada: Industrialización, exclusión y colonialismo digital. Nueva Sociedad, Buenos Aires, n. 294, p. 49-60, 2021.
SILVA, Lucas Gonçalves da; SIQUEIRA, Alessandra Cristina de Mendonça. A (há) liberdade de expressão na sociedade em rede (?): manipulação na era digital. Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, v. 2, n. 23, p. 195-217, 2019.
ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização da informação. In: BRUNO, F. et al. (org.). Tecnopolíticas da Vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 17-68.
Ana Luiza Sabino de Sá e Silva
Graduação em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Atualmente Mestranda em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: analuizasabinosilva@gmail.com.
Lucas Ribeiro Vaz Vitorino
Graduação em Psicologia e Pós-graduação em Teoria Psicanalítica pelo Centro Universitário Academia. Atualmente Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora e bolsista pela FAPEMIG. E-mail: lrvvitorino@gmail.com.
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